A terceira parte deste estudo mostrou que a adoção é um privilégio para o adotante porque permite que ele entenda um pouco melhor a profundidade do amor de Deus Pai. Estudamos que Deus usou a adoção terrena de Jesus, por José, para compor a história de um Reino eterno. Assim, este capítulo final visa apresentar que adoção é o início de uma vida nova fundamentada em amor e não em caridade. Uma vida nova onde há ruptura com uma antiga estrutura familiar para que haja um recomeço em uma nova família.
Acredito que o adotado precisa, desde cedo, saber de sua história, não para que se sinta vítima, mas para que a relação entre adotante e adotado cresça em confiança pautada na verdade. Caso contrário, existe a possibilidade de surgirem sérios problemas ao longo da vida e do relacionamento entre pais e filhos (infelizmente conheço alguns casos com desfecho bem triste). Talvez, em virtude de grande parte das histórias de adoção estarem marcadas por um início triste, alguns pais querem poupar seus filhos da dor e, por isso optam por esconder, omitir parte da história. Em outros casos, os pais não são muito transparentes porque não querem que um ato de amor seja confundido com ato de caridade (infelizmente no século XXI, ainda há pessoas que acreditam que adoção é um ato de caridade – “um bem social”). Obviamente, a história de cada adotado deve ser contada aos poucos e na linguagem e maturidade em que ele se encontra.
Todo caso de adoção é um recomeço de vida, o adotado ganha novo nome e/ou sobrenome, novos pais, nova família, nova casa. Portanto, o vínculo com o passado precisa ser rompido. Em São Paulo, atualmente, quando os adotantes fazem todo o processo de acordo com a lei, essa ruptura ocorre naturalmente, pois tudo é mediado pela Vara da Infância e Juventude. Por exemplo, os adotantes e adotados não tem nenhum contato ou informação com os progenitores, tudo é intermediado pelos assistentes sociais e juiz responsável. No máximo, os adotantes recebem um relatório escrito ou oral sobre algumas informações à respeito do histórico passado. No entanto, no Brasil, ainda é possível, também, que haja casos de adoção dentro dos trâmites legais, mas que por alguma razão preservem contato e vínculo com os progenitores ou familiares antigos. Particularmente não acho saudável, porque a possibilidade de ter duas famílias gera confusão na mente do adotado. Pela lógica, filhos biológicos não têm duas famílias, sendo assim por qual razão filhos adotivos deveriam ter duas famílias?
A ruptura total com o passado é crucial para prosseguir com a nova vida por meio da adoção. Diante desse cenário, notamos que a Palavra de Deus usa a adoção no “mundo dos humanos” como ilustração de um ato amor que permite uma nova vida, em uma nova família. Talvez você não entenda porque Deus faria uma ilustração como essa, ou ainda questione o propósito D’Ele em explicar uma verdade espiritual a partir da adoção, mas como está escrito em Jó 11.7-9 e Romanos 11. 33-36 (Almeida 21):
Poderás descobrir as profundezas de Deus? Poderás descobrir a perfeição do Todo-Poderoso? A sabedoria de Deus é tão alta quanto o céu. Que poderás fazer? Ela é mais profunda que o Sheol! Que poderás saber? Ela é mais extensa que a terra, e mais larga que o mar.
Ó profundidade da riqueza, da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Pois, quem conheceu a mente do Senhor? Quem se tornou seu conselheiro? Quem primeiro lhe deu alguma coisa, para que lhe seja recompensado? Porque todasas coisas são dele, por ele e para ele.A ele seja a glória eternamente! Amém (grifo meu)
A nossa função não é entender o propósito de Deus em utilizar a adoção como ilustração de mistérios espirituais, não temos essa capacidade. Particularmente, gosto de imaginar Deus como um Grande Autor de livros. Quando leio um livro de contos não questiono porque o autor propôs aquela história, os personagens e o enredo. Portanto, assim como um autor tem a liberdade de criar, o Grande Autor, desejou inserir a adoção como uma espécie de conto alegórico que visa transmitir um sentido além do literal.
A adoção, como já percebemos é uma prática antiga, Stephen D. Doe[1], conceitua a adoção como uma ação, pois trata-se de transformar um ilegítimo em legítimo. Logo, há um novo status de relacionamento que não existia anteriormente, o que proporciona ao adotado a mesma condição legal e afetiva do biológico, que já nasce como legítimo.
O tipo de adoção que se pratica atualmente no Brasil, tem como berço o período áureo do Império Romano. A historiadora Alessandra Z. Moreno[2]apresenta um panorama sobre essa temática à luz do Direito Romano:
Do ponto de vista legislativo, a ausência de filhos como incentivo à adoção estava ligada à tradição jurídica romana, onde a incorporação de filhos alheios era utilizada para garantir a perpetuação do culto doméstico, o nome e as tradições familiares de indivíduos sem descendentes. No Direito Romano clássico, essa incorporação era feita por meio da “adrogação[3]” e da “adoção”. Lembrando que a família no código romano dizia respeito a um grupo de pessoas subordinadas ao domínio de um pater familias, e não a membros unidos por laços de sangue ou de matrimônio, destacamos que essas duas formas de incorporação eram delimitadas em função da existência, ou não, de pátrio poder sobre a pessoa a ser incorporada (MORENO, 2009, p. 450-451).
O termo em latim pater familias se refere a uma figura masculina que representa o pai de família. No entanto, durante o período que vigorou o Império Romano (27 a.C a 476 d.C), esse patriarca representava a autoridade máxima de um clã[4]e era substituído somente depois de sua morte. Sendo assim, família não se restringia ao que hoje conhecemos como núcleo familiar (marido, esposa e filhos) e sim, a um amplo grupo. A família, durante o Império Romano, eram todas as pessoas que estavam sob o poder do pater familias, essa ligação poderia ser tanto biológica quanto jurídica. Pela perspectiva legal romana, o pater famílias detinha muitos direitos e dentre eles, destacam-se: a) o direito de punir escravos; b) o direito sobre a vida ou morte de uma criança recém nascida dentro do clã; c) o direito de adotar uma criança que estivesse apta para adoção e nem sempre eram órfãos (WALTERS, 2003)[5].
O contexto histórico é importante, porque nos traz à lembrança qual era a realidade da adoção nas sociedades vigentes no momento em que Novo Testamento foi escrito. Ao mesmo tempo, nos dá informações para compreendermos a adoção como analogia de nova vida. O propósito da adoção terrena é apontar para a adoção espiritual como garantia de benção e possibilidade de redenção em uma nova família.
O apóstolo Paulo, usou a adoção para explicar a relação de filiação e relacionamento que os primeiros cristãos de Roma podiam usufruir com Deus Pai (Pater Familias). E, uma vez que essa carta está registrada na Bíblia, podemos entender que essa mesma verdade se aplica a nós, hoje.
Paulo, de forma sutil introduz, no início da carta aos romanos, o pano de fundo da analogia da adoção terrena com a adoção espiritual. O apóstolo menciona Jesus, que como homem era descendente de Davi (por adoção, como vimos anteriormente) e pelo Espírito, filho biológico de Deus (Rm 1.3-4).
Um panorama geral e resumido da carta de Paulo aos romanos permite-nos visualizar que a simbologia da adoção foi construída de acordo com os padrões legais da época, na autoridade máxima do pater famílias. Isso porque nos capítulos 1 e 2 do livro de Romanos, apresentam Deus soberano e com autoridade para decidir sobre a vida e a morte, semelhante à função terrena desempenhada pelo pater familias. Além disso, o capítulo 3 demonstra que pela lei de Deus, embora sejamos criaturas D’Ele estamos destituídos de sua proteção, por consequência do pecado. Pela lei romana o pater familiaspoderia punir ou rejeitar todos os que estavam debaixo do seu poderio, mesmo que biologicamente estivessem ligados a ele. Entretanto, a partir do final do capítulo 3 até o capítulo 7, da carta de Paulo aos Romanos, o apóstolo apresenta os termos da adoção espiritual: a fé no sacrifício de Jesus.
A simbologia da adoção como nova vida tem o seu ápice no capítulo 8, onde claramente Paulo apresenta os termos da adoção espiritual que legalmente garante os direitos e deveres de um filho:
Entretanto, vocês não estão sob o domínio da carne, mas do Espírito, se de fato o Espírito de Deus habita em vocês. E, se alguém não tem o Espírito de Cristo, não pertence a Cristo. Mas, se Cristo está em vocês, o corpo está morto por causa do pecado, mas o espírito está vivo por causa da justiça.E, se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vocês, aquele que ressuscitou a Cristo dentre os mortos também dará vida a seus corpos mortais, por meio do seu Espírito, que habita em vocês. Portanto, irmãos, estamos em dívida, não para com a carne, para vivermos sujeitos a ela. Pois, se vocês viverem de acordo com a carne, morrerão; mas, se pelo Espírito fizerem morrer os atos do corpo, viverão, porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Pois vocês não receberam um espírito que os escravize para novamente temerem, mas receberam o Espírito que os torna filhos por adoção, por meio do qual clamamos: Aba, Pai. O próprio Espírito testemunha ao nosso espírito que somos filhos de Deus. Se somos filhos, então somos herdeiros; herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo, se de fato participamos dos seus sofrimentos, para que também participemos da sua glória (Rm 8. 9-17 – grifo meu)
Importante ressaltar, que a continuação do capítulo 8 da carta aos romanos, esclarece que a revelação da adoção deve ser aguardada por todos os que aceitam o sacrifício de Jesus e têm sua vida transformada (Rm 8.18-25). O tempo de espera para que a nossa adoção seja revelada é o mesmo período que Jesus tem que aguardar para se tornar Rei de Israel, aqui na Terra (direito humano adquirido por meio de sua condição de adotado por José). Sendo assim, a condição legal de filiação já existe, mas a herança decorrente deste statusserá recebida no futuro.
O contexto patriarcal de toda a carta aos romanos continua sua estrutura lógica nos capítulos posteriores, onde apresenta novamente a soberania de Deus como pai (Pater Familias) que tem autoridade para decidir a quem quer adotar (esse é o privilégio do adotante), conforme escrito em Romanos 9 a 11. Na sequência, os capítulos 12 à 15 da carta aos romanos, são instruções de nova vida para os filhos adotivos, ou seja, como cada um de nós devemos proceder debaixo da autoridade e supervisão de Deus – O Supremo Pater Familias.
Com base em todo esse cenário, notamos que Deus instituiu a adoção terrena justamente para que compreendêssemos a grandeza da adoção espiritual. Ao experimentar o amor que eu tenho pelos meus dois filhos adotivos é ter o privilégio de contemplar uma pequenina amostra do amor que o meu Pai celestial tem por mim. Isso significa que mesmo eu sendo imperfeita Ele me ama, quando eu peco Ele me perdoa, que Ele não me escolheu por atributos biológicos, físicos ou espirituais. Assim como, Luciano e eu escolhemos adotar o Pedro e o Vitor por amor, Deus, antes da fundação do mundo me escolheu, por amor e, escreveu meu nome no Livro da Vida.
Por outro lado, como filha adotiva consigo experimentar a benção de fazer parte de uma família tão especial. Pela graça, sou filha adotiva de um Pai muito criativo, um Grande Autor de histórias de vida e do melhor Professor que nos ensina verdades tão belas e profundas.
Entretanto, se você, mesmo depois de ler tanto sobre adoção, ainda não consegue entender a dimensão dessa nova vida, a minha oração é que Deus, na sua infinita graça, abra os olhos do seu entendimento. Assim, você poderá experimentar a alegria de ser irmão mais novo de Jesus, porque:
[…] aos que o receberam, aos que creram em seu nome, deu-lhes o direito de se tornarem filhos de Deus, os quais não nasceram por descendência natural, nem pela vontade da carne nem pela vontade de algum homem, mas nasceram de Deus ( Jo 1. 12-13 – grifo meu).
Ao nos tornarmos filhos de Deus estamos aceitando viver debaixo do senhorio D’Ele como Pater Famílias. Ao mesmo tempo que essa decisão nos dá esperança de uma herança futura, a vida eterna, também exige de cada um de nós a responsabilidade de andarmos de acordo com o manual deixado por Deus.
Por fim, toda família tem suas regras e sua forma de viver, a família celestial também tem o seu manual de conduta, trata-se da Bíblia. É impossível almejar desfrutar a condição de filiação sem viver uma nova vida e, para isso temos a Palavra de Deus que nos orienta conforme escrito em 2 Pedro 1.4; 2 Timóteo 3.16, 17; Salmos 19.7-9; 119.105.
Bianca Bonassi Ribeiro
[1] Stephen D. Doe é pastor da Orthodox Presbyterian Church em Oxnard, Califórnia e escreveu o artigo: Setting the Solitary in Families: The Bible and Adoption.
[2] MORENO, Alessandra Zorzeto. Adoção: Práticas Jurídicas e Sociais no Império Luso-Brasileiro (XVIII-XIX). HISTÓRIA, São Paulo, 28 (2): 2009.
[3] Adoção de uma pessoa maior de idade.
[4] Conjunto de famílias com um antepassado comum, unidas por esse vínculo.
[5] WALTERS, James C. Paul, Adoption and Inheritance. In: SAMPLEY, J.P. Paul in the Greco-Roman World: a handbook. Trinity Press International: Harrisburg, 2003.
Confira também as publicações anteriores da série sobre adoção:
Sobre a adoção. Parte 1. Adoção como bênção. Sobre a adoção. Parte 2. Adoção como propósito. Sobre a adoção. Parte 3. Adoção como privilégio
Bianca é casada com Luciano. Eles têm dois filhos, o Pedro e o Vitor. Ela faz parte da equipe docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie-SP, desde 2007 e é membro da Primeira Igreja Batista de Atibaia.
Bianca é doutora em Comunicação e Semiótica, mestre em Administração e graduada em Administração de Empresas.
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